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Cordel: a história contada em versos

Considerada uma das expressões poéticas mais antigas do Nordeste brasileiro, a literatura de cordel vem resistindo ao tempo e às novas tecnologias com a receita de fidelizar admiradores ao longo dos anos. O conteúdo e a simplicidade do folheto são capazes de despertar uma atenção sem igual.

MuitoObrigado

Contextualizando...

Em uma de suas obras, a cordelista Maria do Rosário Lustosa explica como se deu a chegada da literatura de cordel no Brasil: “foi no século XIX/ bem pertinho do seu fim/ que resolveram escrever/ o que cantavam e assim/ o que antes era música/ virou também folhetim”. Por aqui, o cordel abordou fatos do cotidiano, episódios históricos, lendas, temas religiosos e outros. Tudo de relevante ou corriqueiro que mereça se transformar em poesia, passa pela criatividade de pessoas que dedicam a vida para divulgar e promover a arte. Tudo isso obedecendo uma formatação própria. “O processo [de criação do cordel] envolve a métrica e a rima. Dentro da poesia, o cordel pode ser escrito em sextilha, séptilha ou décima, que são as modalidades mais usadas pelos poetas”, esclareceu Rosário.

 

No Cariri, a produção do cordel ganhou força quando, em 1926, o alagoano José Bernardo da Silva fundou a primeira tipografia da região, a Tipografia São Francisco, hoje conhecida como Lira Nordestina. Para o xilógrafo José Lourenço, esse foi o passo mais importante para que a literatura ganhasse força. “Naquela época já existiam vários poetas importantes por aqui, e a tipografia veio para facilitar a produção dos cordéis no sul do estado”, disse. José Lourenço acrescentou que a iniciativa de José Bernardo foi tão exitosa, que, na década de 1950 foi necessário expandir a produção. “Ele foi um homem muito inteligente, sabia bem qual o papel do cordel na sociedade, sabia que havia um público cativo e resolveu investir pesado no negócio. Ele comprou todo o maquinário necessário para alavancar a produção dos cordéis. E não demorou muito para que saísse daqui de Juazeiro do Norte a maior impressão de cordel do Brasil”, completou.

Xilogravura

É impossível falar em cordel e não lembrar da xilogravura. Logo na capa dos livretos está presente uma outra arte, também muito antiga, e de extrema importância. A técnica de origem chinesa acontece através de cortes na madeira, formando uma gravura. A impressão acontece quando o xilógrafo utiliza uma tinta preta em cima da madeira entalhada para marcar o papel.

 

Aqui no Cariri, a Lira Nordestina também utilizava a técnica para ilustrar os temas trabalhados nos cordéis. Os traços marcantes da xilogravura encantam as pessoas até hoje e montam os cenários necessários para que os leitores viagem e compreendam melhor a poesia.

“No início, aquelas capas eram feitas com um grande gravador. O Mestre Noza, que foi um dos grandes precursores da xilogravura, Antônio Batista, e tantos outros gravadores, eram os responsáveis por trazer aquela arte para os cordéis produzidos em Juazeiro”, disse José Lourenço.

O CORDEL COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO

E foi através dessa arte que as pessoas se informaram e se deliciaram com as histórias que eram contadas nas rimas. Era por meio desses folhetos, que geralmente são impressos em 16 ou 32 páginas, que as pessoas recebiam as últimas notícias locais e nacionais. O cordel foi pioneiro em trazer informação ao povo. O fato aconteceu principalmente pela inexistência ou baixa quantidade de veículos informativos como jornais impressos, rádio e TV.

No entanto, com a chegada desses veículos, o cordel viu seu espaço diminuir. A imagem e o som fizeram com que o número de cópias caísse. Maria do Rosário também rimou o declínio do cordel: “depois que apareceu o rádio e a televisão/ a notícia foi chegando/ com ligeira e com precisão/ e o cordel foi esquecido/ pelo seu grande povão”.

RESISTÊNCIA

Nem todo mundo esqueceu o cordel. Na cidade do Crato, por exemplo, há uma academia criada especialmente para a produção e divulgação da literatura cordelista. Assim como a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Academia dos Cordelistas do Crato (ACC) é representada por grandes nomes da arte das rimas.

 

Maércio Siqueira, cordelista e um dos membros da academia, explica que a ACC “foi fundada em 1991, por Herói Teles de Morais, como um espaço para que um grupo de poetas pudesse, através de sua arte e criatividade, manter viva a tradição do cordel”.

 

Apesar de não ser o melhor momento da história do cordel, até hoje ele é presente no dia a dia das pessoas. Através da própria academia, de cordeltecas, que funcionam como bibliotecas específicas para cordéis, e de projetos de valorização e distribuição desta arte.

 

Com tantas características apaixonantes, a resistência às inovações é o que mantém a chama do cordel acesa pelo Nordeste. Os versos de Maria do Rosário exemplificam com maestria como isso acontece: “No Crato cordel é gente/ tem até academia/ No Juazeiro ele é pai/ pois o Sesc financia/ gerando novos talentos/ vai nascendo fio e fia/ No Juazeiro o Sesc Cordel patrocina com amor/ No Crato o Cordel na Feira é um grande portador/ Sociedade dos Poetas de Barbalha dá valor”. 

De leitor a promotor cultural

A região do Cariri é privilegiada por sua diversidade cultural, seja na literatura, na arte, na música, na culinária, na religiosidade. A tradição e a cultura popular são enraizadas no solo fértil da região. Uma dessas tradições é a literatura de cordel. Nomes como Josenir Lacerda - primeira mulher caririense a tomar posse na Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), o poeta Pedro Bandeira, Pedro Ernesto, Raul Poeta, Ernani Tavares Monteiro, entre outros, mostram em suas poesias o que o Cariri tem de melhor, a cultura. Eles carregam no sangue a amor pelo cordel. Mas existem também aqueles que são bons leitores, e são responsáveis por difundir o conhecimento e as tradições para as novas gerações. Uma dessas pessoas é Vandinho Pereira, homem simples, sonhador e amante da literatura do cordel. Um verdadeiro colecionador de versos.

 

O início

Vandinho Pereira, apresentador e radialista, também é um grande colecionador de cordéis. Aos 36 anos, dedica sua vida especialmente à cultura popular. Começou ainda jovem, na sua cidade natal, Conceição, na Paraíba, a tomar gosto pela cantoria de viola e pela literatura do cordel. Seu irmão mais velho foi alfabetizado através dos cordéis. Nas reuniões de família seu irmão lia os cordéis para todos. Vandinho ficava fascinado por aquela arte e foi vivenciando com influência e incentivo do irmão. Embora ele se profissionalizasse em outra área, a poesia do cordel sempre esteve paralela aos seus trabalhos. Depois surgiu a oportunidade de vir trabalhar no juazeiro do Norte como radialista. 

 

Nos últimos quinze anos, vem promovendo cantorias, e, especialmente, nos últimos anos dedica-se a desenvolver, exclusivamente, a produção cultural e projetos culturais. Apesar de ser radialista, suas produções tomaram outras dimensões e há oito anos apresenta um programa na TV Verde Vale, Canal 13, afiliada à NGT ( Nova Geração de Televisão). Seu programa funciona de segunda a sexta, das 18h as 19h. O Ceará Diverso tem como missão a divulgação, difusão e promoção da cultura, especialmente das vertentes populares, a exemplo da cantoria e do cordel.

 

 

Acervos

Depois que Vandinho começou a trabalhar em parceria com os cordelistas na TV, ele passou a receber materiais para fazer lançamentos no Ceará Diverso e no seu projeto Cordel Educativo, que incentiva a leitura de cordel. Também mantém parcerias com o Centro Cultural do Banco do Nordeste, através do projeto Cordel do Cariri, e com o SESC do Juazeiro do Norte, através do projeto SESC Cordel. Daí veio o interesse em guardar esses materiais. Hoje ele tem um acervo de mais de dois mil títulos arquivados na sua casa e no seu escritório. Inclusive, a bancada da recepção do seu escritório sempre está cheia de cordéis que qualquer pessoa pode pegar para ler. Os cordéis que ele distribui são sempre gratuitos, embora não seja proibida a venda desse material. Mas sua intenção é através da sua marca incentivar a leitura do cordel e aproximar as pessoas à cultura popular. Então há uma mobilização com os parceiros para a distribuição dos cordéis na região, contribuindo de forma significativa na movimentação dessa arte.

 

Dificuldades

Apesar dos apoios, inclusive dos governos Federal Estadual, a maior dificuldade são as burocracias. Para um cordelista, na maioria das vezes uma pessoa simples, fazer um projeto e conseguir sua aprovação implica enfrentar uma burocracia exaustiva. E quando se aprova um projeto é necessária a participação de terceiros, que acabam “comendo” parte da verba que deveria ser investida. É necessário desburocratizar as formas de promover a cultura.

Outro problema grave é indireta, facilita o investimento na cultura popular da região.

 

A cultura popular é...

“importantíssima para todo o país. A bandeira do Nordeste deve ser levantada com os cordelistas, poetas, repentistas, xilógrafos e toda a cultura regional. E é assim que deve pensar o cordelista, ter firmeza no que faz. Não se vender por dinheiro, não trocar sua ideologia por nada e modificar as pessoas pelo prisma da cultura popular”.

Queerdel, uma nova forma de se fazer cordel

O Movimento Queerdel - transgressão e memórias de gêneros e sexualidades na região do Cariri, idealizado pelo estudante do  curso  de Comunicação Social da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Pablo Soares, possibilita uma nova forma de fazer poesia através dos cordéis de resistência. O projeto conta com o apoio da Pró-reitora de Cultura da UFCA e teve origem a partir da experiência de Pablo com a disciplina “Cordel, Informação e Memória”, ministrada no curso de Biblioteconomia, pela professora Francisca Pereira (Fanka).

 

Pensar o cordel como uma mídia que possibilita o povo falar para o povo, sem a intermediação de “agentes sociais” ou censuras, foi o primeiro passo para a criação do Queerdel. Sua própria denominação é instigante, pois deriva da junção das palavras Queer¹ e Cordel. Sobre a palavra Queer, seu significado original deriva de uma gíria inglesa - "estranho", "esquisito", "ridículo" ou "extraordinário". O termo, por muito tempo, foi utilizado de maneira ofensiva para com as pessoas que não seguem os padrões da heterossexualidade e hoje denomina uma teoria que reflete a respeito das questões de gênero e sexualidade.

 

 

A junção das duas palavras, dando nome ao Movimento, é simbólica das transgressões e resistências que ganham forma de poesia, abordando em suas narrativas um caráter de resistência e combate às diversas formas de opressão oriundas de um sistema patriarcal, heteronormativo, racista e capitalista, que age de forma excludente, marginalizando tudo aquilo que foge do seu padrão.

 

Para Pablo Soares, o cordel vai além da perspectiva de literatura, se consolida como uma mídia alternativa que está viva na região do Cariri. “A perspectiva que o Queerdel trabalha é a do cordel como meio de comunicação de resistência, o cordel em si já é considerado uma mídia de resistência e por isso mesmo vemos nele uma forma ideal para se trabalhar temáticas que também envolvem a resistência, como: gênero e sexualidade, raça e etnia, MST, reforma agrária, acessibilidade, preconceitos linguísticos e etc”, explica.   

 

Utilizar o pequeno folheto para sair da situação de simples burocrata e consolidar políticas de inclusão na universidade e além dela, não é uma tarefa fácil, ainda mais em uma região cuja herança do Patriarcado deixou impregnado em nossa cultura o machismo, as diversas formas de preconceito e a desvalorização da figura feminina e de tudo o que é afeminado. Essa iniciativa possibilitada pelo Queerdel no Cariri, também pode ser observada na produção de poetas como Varneci Nascimento e Nando Poeta, que, conjuntamente e procurando desconstruir a imagem preconceituosa da literatura de cordel, escreveram o cordel “Homossexualidade: História e Luta”. 

Uma das mulheres pioneiras na arte do Cordel no Cariri 

Natural do Crato, Josenir Lacerda, ilustre poetisa, cordelista e artesã da região do Cariri, abre seu acervo cultural “Cordel e Arte”, e nos fala como iniciou sua relação com o cordel. Influenciada pelo amor de sua avó por uma coleção de cordéis, Josenir conta que a escassez de notícias em decorrência da inexistência de meios de comunicação na época e a dificuldade para ter acesso aos estudos, desencadeou a utilização frequente do cordel, como uma forma para saber o que acontecia no mundo.

 

 

Primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, além de ser cofundadora da Academia de Cordelistas do Crato, ela afirma a existência de preconceito com a produção de cordéis por mulheres, ainda que nunca tenha sentido esse estranhamento dentro da academia.

 

Uma das mulheres pioneiras na produção de cordéis na região, Josenir diz ter nascido com a cultura cordelista pulsando em suas veias, já que sem nem ao menos conhecer astécnicas da produção, escrevia e dava vida ainda adolescente aos seus cordéis, publicando dezenas deles,a exemplo de Bicicleta Véia e O Linguajar Cearense.

 

Hoje, Josenir Lacerda é amplamente dedicada às tradições do Cariri, lutando pela preservação da cultura na região, através de seus trabalhos como poetisa, cordelista e artesã, além do belo empenho pela manutenção de toda essa riqueza cultural com o “Cordel e Arte”, espaço que divulga e conserva esse acervo, possibilitando o encontro de inúmeros artesãos, poetas, estudantes e pesquisadores de diversas áreas.

Expediente

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